Os Sentidos da Transformação arte cultura e espaço urbano em Santa Teresa
- Ana Prado
- 4 de out. de 2016
- 18 min de leitura
A abordagem na esfera da cultura e sua relação com as mais recentes transformações do bairro Santa Teresa (Figura 1) no Rio de Janeiro pautou-se no interesse de investigar o projeto Arte de Portas Abertas, evento que acontece desde a década de 1990 e ocorre anualmente no bairro, onde os artistas abrem seus ateliês para a visitação pública. O Arte de Portas Abertas é um evento de práticas artísticas, voltado mais especificamente para as artes visuais que foi estabelecendo relações com os espaços públicos e aparentemente criaram convivências sociais intervindo nos diferentes modos de produção local.

Figura 1 – Foto do bondinho - bairro Santa Teresa - RJ
O entendimento das transformações do bairro e seu efetivo alcance no âmbito das chamadas “revitalizações” contribuem para analisar os parâmetros que regem a vida urbana, a relação cultura - espaço – tempo, onde se inscreve o evento e outras iniciativas sócio-culturais locais.
As revitalizações urbanas e todas as demais denominações de prefixo “re”, renovação, reabilitação, requalificação, regeneração, entre outras, percorrem a agenda urbana do mundo globalizado. Tais denominações estão relacionadas a leituras diferenciadas do espaço e de sua problemática, podendo ser entendidas como uma reestruturação funcional, arquitetônica e sócio-cultural inserida num conjunto de programas e projetos, públicos ou de iniciativa autônoma, que incidem sobre as relações sociais e os tecidos urbanos. (VAZ, JACQUES, 2001)
No momento presente da história das transformações das cidades, quando estas passam a ser geridas como mercadoria, tendência identificada nas últimas duas décadas de ascensão neoliberal, críticas e questionamentos vêm sendo levantados. Liderado pela ofensiva liberal-conservadora que associa incorporadores, corretores, banqueiros, todos ancorados na mídia, políticos, planejadores urbanos e agentes culturais promovem uma articulação consensuada a respeito da necessidade de gerir a cidade como negócio (ARANTES, 2002, p. 66) e vendê-la como um produto. (SÁNCHEZ, 2003, p.491).
Com o fim da era do crescimento, o planejamento urbano perde seu caráter de evidência e racionalidade moderna. As revitalizações urbanas incorporam a crença economicista de expansão e as parcerias entre setor público e iniciativa privada passa a ser a fórmula salvadora, questionada por Otília Arantes (2002, p.62) por ocasionar a multiplicação de réplicas de requalificações por todo o mundo. Associada a estas requalificações e vinculadas ao elogio mercadológico, a produção cultural se evidencia fomentando a chamada “cultura de eventos”. Concorrendo para sua espetacularização prioriza-se a cultura como mercadoria, associada à lógica do imediatamente rentável. (JAMESON,1991apud PALLAMIN, Vera, 2002)
Santa Teresa mesmo sem figurar na agenda do poder público como uma possível área de renovação urbana a incorporar os princípios das recentes estratégias urbano-culturais, potencializa de forma autônoma ações sócio–culturais, que vêm promovendo transformações significativas no cotidiano da população. Com escassos investimentos públicos foram alguns grupos e atores locais apoiados pelo setor privado que contribuíram para o fortalecimento da tradição cultural e a recuperação da imagem do bairro. Associados ao prestígio dos artistas promoveram a revitalização do comércio local e as atividades turísticas, além de incentivar a recuperação de um número significativo de imóveis.
O Arte de Portas Abertas (Figura 2), o Prêmio Interferências Urbanas (Figura 3) e o Encontro de Coletivos de Arte ( Figura 4), por serem iniciativas ligadas às artes, dentro da perspectiva de renovação urbana, produzem consensos de que atividades artísticas de toda a natureza, associadas aos recursos naturais e arquitetônicos do bairro e aos interesses econômicos podem trazer benefícios positivos para a população tais como: geração de emprego, ampliação dos negócios, melhoria da qualidade de vida.

Figura 2 - Capa do primeiro catálogo do Arte de Portas Abertas foto de Regina Alvarez

Figura 3 – Prêmio Interferência Urbana 2002 - O beijo na Santa de Daniel Valentim

Figura 4 – Encontro de Coletivos 2004 - Xilogravura do grupo Espaço Coringa
Estas questões sempre suscitaram perguntas; mas será que de fato estas iniciativas estão atuando de forma significativa e eficaz no desenvolvimento local? Será que a cultura na forma do seu refinamento ostensivo é de fato, o caminho para a recuperação da vitalidade do bairro de Santa Teresa? Mais do que simplesmente responder, os eventos trouxeram reflexões importantes que situam estas iniciativas na base do pensamento da cultura nos tempos atuais que contribuem para o entendimento dessas indagações.
Percebe-se que a partir de um determinado momento, quando o Arte de Portas Abertas abriu espaço para reflexões a respeito da “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural” proclamada pela UNESCO, a questão da cultura ficou evidente. O segundo artigo deste documento que fala do pluralismo cultural e dos intercâmbios dentro de um contexto democrático vinculadas ao desenvolvimento local se aplica perfeitamente às ações implementadas:
Artigo 2 – Da diversidade cultural ao pluralismo cultural
Em nossas sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir uma interação harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plural, variadas e dinâmicas, assim como sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz. Definido desta maneira, o pluralismo cultural constitui a resposta política à realidade da diversidade cultural. Inseparável de um contexto democrático, o pluralismo cultural é propício aos intercâmbios culturais e ao desenvolvimento das capacidades criadoras que alimentam a vida pública.
O conjunto de princípios da UNESCO é verificado nos eventos quando na implementação de um roteiro gastronômico com cozinha brasileira e internacional, ações de intercâmbio com outros países, ações de arte pública, ações de preservação e restauro de arte e ações com fins sociais como é o caso do projeto Jovens Aprendizes, todos sintonizados com valores culturais contemporâneos e globalizados.
Historicamente o processo de construção, destruição e reconstrução típicas da noção de civilização (MARTINS, 2002) deram as peculiaridades dos movimentos de continuidade, oposições e mudanças que foram constituindo o “lugar Santa Teresa”. O procedimento de um fazer e desfazer, noção permeada com a chegada da vida moderna, com o efêmero de práticas e juízos estéticos fragmentados permitiu compreender o novo papel das artes e da cultura neste espaço urbano.
Em se tratando das transformações na modernidade a reflexão da cidade sob o olhar dos situacionistas, um dos primeiros grupos a criticar o movimento moderno em arquitetura e urbanismo vem se somar no entendimento desta dinâmica de um espaço de vida coletiva.
Cabe lembrar que a Internacional Situacionista (IS) foi um movimento formado por um grupo de artistas, pensadores e ativistas que lutavam contra o espetáculo, a cultura espetacular e a espetacularização em geral, ou seja, contra a não – participação, alienação e a passividade da sociedade (JACQUES, 2003). Nos anos setenta e oitenta quando as cidades começaram a ser geridas como negócio, David Harvey (1992) identifica este processo como uma prerrogativa do mundo capitalista para as cidades, cujos gestores assumem um comportamento empresarial e mercadológico em relação ao desenvolvimento econômico.
Críticas a este modelo são abordadas por Otília Arantes quem se preocupa com o senso comum econômico, ou seja, com a fabricação de consensos em torno do crescimento econômico a qualquer preço (ARANTES, 2002). A problematização da relação entre as fortes iniciativas locais com o crescimento econômico norteado pela relação direta entre configuração espacial urbana, produção de um consenso dos atores locais em torno a um modelo de desenvolvimento e a produção ou reprodução do capital é fundamental para o entendimento do processo de desenvolvimento pelo qual vem passando o bairro. Santa Teresa.
As análises das recentes manifestações culturais que permeiam o evento Arte de Portas Abertas a partir da década de 1990 relacionam dois campos vitais arte e espaço urbano e contribuem para esboçar as mudanças e as possíveis tendências de crescimento para o bairro.
Percebe-se que o melhor atributo que confere riqueza e interesse a estas questões é o que chamamos de “processo”. No sentido mais restrito, processo segundo Antônio Houaiss significa:
Ação de proceder
Ação continuada, realização contínua e prolongada de alguma atividade; seguimento, curso, decurso.
Seqüência contínua de fatos ou operações que apresentam certa unidade ou que se reproduzem com certa regularidade; andamento, desenvolvimento, marcha.
Modo de fazer alguma coisa; método, maneira, procedimento.
Este entendimento é revelado por Julio Castro ao dizer que o projeto Arte de Portas Abertas é uma eterna construção e é reforçado por não ter uma proposta fechada, não tem uma fórmula, os artistas vão descobrindo a maneira de realizar conforme as coisas vão se tornando viáveis pelos caminhos que se apresentam.
Nesta ação de proceder, ou seja, ação continuada de atividades com certa unidade em direção ao desenvolvimento local é que os atores e moradores vêm dando significado e mantendo uma regularidade no sentido de garantir em Santa Teresa aquele lugar bom de viver.
Os procedimentos que dão sentidos a este processo na verdade estão delineados nas raízes históricas que marcaram o espírito de preservação, que acompanha o bairro desde as suas primeiras formações, quando da primeira lei de proteção ambiental decretada por D.João VI , determinante mais tarde para a constituição da arquitetura eclética que ainda sobrevive no bairro.
Mas a preservação desta arquitetura não foi tão fácil assim. Na passagem de períodos onde o glamour espacial e social que permaneceu até 1920, Santa Teresa cede lugar para os novos bairros balneários, ao longo da orla marítima, sobretudo Copacabana. Como conseqüência já nos anos 30 o bairro sofre com discussões e polêmicas entre profissionais de arquitetura, em torno da validade do estilo eclético como representante da identidade nacional (MARTINS, 2002). Este estilo da arquitetura foi repugnado na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SHPAN. O barroco, então, representa o passado do país e a “Nova Arquitetura” o Brasil “moderno”.
Sem dúvida nenhuma que este comportamento se transformou ao longo do tempo, marcado, sobretudo pelo esforço de seus habitantes que ressaltaram a dimensão monumental deste ambiente, e através de mecanismos políticos buscaram soluções na direção da preservação.
Também intelectuais e políticos das primeiras décadas do século XX viram Santa Teresa tornar-se durante a segunda guerra o porto seguro, como Vieira da Silva e Arpad Szvenes (Figura 5) e de tantos outros artistas brasileiros que a eles juntaram-se, a exemplo de Djanira e Heitor dos Prazeres. Estes pintores oriundos de um meio social humilde e das favelas que despontam naquela ambiência social e intelectual eclética e ali conseguem atingir o apogeu como artistas e contribuem para caracterizar Santa Teresa como território de contrastes. (MARTINS, 2002)

Figura 5 – Vieira da Silva e Arpad Szvenes no antigo Hotel Internacional local onde os artistas se hospedavam na década de 40
Estes contrastes e conflitos, assim como os que aconteceram no momento da criação da área de proteção ambiental, que impediu a especulação imobiliária (decreto nº. 495 – APA) e a preocupação com a gentrificação da área, que divide interesse em parte dos moradores nos dias atuais, de certa maneira contribuem para a formação de novas identidades culturais relacionadas aos processos de globalização, típico das transformações das cidades atuais.
Destacamos como definição de “identidade cultural” - aquilo que Stuart Hall (2003, p.8) chama de aspectos de nossas identidades que surgem de nosso “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e nacionais. Entretanto segundo ele as identidades na globalização (entendida como especialização flexível e de estratégia de criação de “nichos” de mercado) exploram essa diferenciação local, mas não substitui o global, mas determina uma nova articulação entre o “global” e o “local” na direção de novas identificações entre as duas correntes. (HALL, 2003, p.77).
Mesmo estando inserido nestes procedimentos globalizantes, há, porém, fatos que nos permitem afirmar que o caso de Santa Teresa não se limita a uma simples réplica da pauta cultural em voga nos processos de modernização urbana.
Aqui não foi seguido um modelo pronto, nem foi instalado um grande equipamento cultural para servir de âncora aos processos de renovação urbana. Ao contrário, os equipamentos parecem ter surgido a partir da afirmação de certos processos e as correlatas necessidades dos grupos sociais quanto a espaços expositivos, performances de rua ou espaços para reuniões.
Deste modo, os atores e processos relacionados à transformação do bairro por meio da cultura parecem estar identificados com dois movimentos simultâneos: de dentro para fora do lugar e de fora para dentro.
Aos poucos vai se definindo uma rica articulação trans escalar, dando significado ao local não apenas como a micro-escala que reproduz uma tendência global. São os atores em seus múltiplos vínculos com o território urbano que vão construindo sua pauta cultural e nela construindo o diferencial dos processos locais.
Ao mesmo tempo, os atores parecem conscientes e interessados em manter e produzir vínculos fortes com outras escalas, no que se refere às tendências mundiais da arte contemporânea. Assim, tampouco se fecham para consagrar uma provinciana idéia de que tudo aquilo que é de base local é, por si só bom para o bairro e para seus grupos sociais. Mas quais os exemplos desse movimento em duas mãos?
No sentido de dentro para fora, como exemplo deste processo está a iniciativa do projeto “Santa Teresa Território Turístico Sustentável” implementado pela LUNUZ, o que nos parece uma fecunda preocupação de troca com a citada rede global e que tende a promover a exportação de mercadoria constituída nos valores estéticos e sócio-culturais do bairro. Também a iniciativa do Cine Santa, que através do FestRio, se integra ao circuito internacional de cinema participando de uma rede de festivais que está entre os seis maiores encontros mundiais de cinema.
No outro sentido, de fora para dentro o movimento da Chave Mestra que se preocupa em constituir no bairro um espaço de discussão e de implementação das mais recentes inflexões no campo da arte contemporânea, como a arte efêmera e as organizações dos artistas em coletivos de arte.
Sobre este aspecto o bairro figura como elemento principal e restaurador em relação aos antigos espaços museificados, das relações sociais do qual a arte está intimamente ligada e neste sentido Santa Teresa sai à frente de tudo o que mais acontece em termos de produção artística em espaço público na cidade do Rio de Janeiro.
Os movimentos de arte efêmera, ou seja, sitespecific, produzido para determinado local percorre o mundo globalizado desde a década de 70. O efêmero potencializado na sua maior condição, permeia toda produção artística contemporânea e se agudiza a ponto de trabalhos como o de Arthur Barrio, em maio de 1970 que permanece “4 dias e 4 noites”, nome do trabalho, perambulando numa experiência de deriva pela cidade do Rio de Janeiro..
Referenciados pelos situacionistas, os coletivos de arte chamam a atenção de paisagens escondidas, e evocam um re-ligare afetivo com os espaços públicos. Não é um revivel, segundo Luiz Camilo Osório há uma vontade de inserção na vida; há uma articulação entre arte e política, mas é outro contexto, outra realidade. Os coletivos de arte vêm atuando marcadamente nos últimos cinco anos e promovem uma resistência aos métodos tradicionais de comunicação de arte. Buscam outros canais alternativos e principalmente atuam de forma coletiva (Figura 6). Seu potencial está no processo de fortalecer o indivíduo pelo coletivo.

Figura 6 – Projeto Coletivações, Nuit blanche , Paris / out 2005 – Máscaras do grupo Imaginário Periférico
Isto se reflete também em diferentes formatos de criação artística, tendendo de certa maneira no caso dos coletivos para ações muito mais de iniciativas sociais. Às vezes se questiona, mas precisa ser artista para criar estas intervenções? Pode-se dizer que necessariamente não. Muitas vezes o artista é o iniciador do processo e seus aliados e públicos em geral assumem a corrente que vai se desencadeando de uma idéia inicial, não sendo possível ao longo do processo identificar seu idealizador.
Mas fica a pergunta: como o artista sobrevive com este tipo de trabalho? Os artistas enfrentam um desafio de executarem seu trabalho num campo experimental situado entre a participação ativa da sociedade, colocações propriamente artísticas e a documentação do real. Assim as tentativas vão desde a abordagem de eventuais parceiros, passando pela elaboração artística das contribuições e à oferta de participar de novas estruturas de percepção. (BÜTTNER, 2002)
Aqui vale a pena ressaltar dois trechos do discurso do Ministro Gilberto Gil na abertura da 27ª Bienal de Arte de São Paulo que este ano teve como tema “Como Viver Junto”. O discurso evidencia o pensamento do poder público no campo da arte e da cultura, reforçando o papel do artista e da nova dinâmica nas artes visuais.
O primeiro trecho revela o que falamos mais acima sobre o movimento de fora para dentro e vide verso, ou seja, arte do mundo para o Brasil:
A partir de hoje estaremos reunidos outra vez em torno da produção da arte contemporânea. Desde muito a arte de todo o Mundo freqüenta o Brasil e marca esse evento que é a Bienal Internacional de São Paulo. Ela foi uma das exposições periódicas que fez da arte moderna um fenômeno global. Mas ela não viveu só de seu esplendor inicial, de suas certezas modernistas da primeira hora, a Bienal sempre soube se refazer a cada edição, dando abertura às manifestações esteticamente inovadoras, abrindo espaço à arte que até hoje vive um processo constante de superação.
O segundo trecho nos remete e reforça a importância da arte viva, de hoje para hoje, fora dos museus e do papel do artista como figura poderosa da cultura:
Espero que, agora inaugurada, essa exposição seja mais uma vez um salto em direção ao desconhecido, um momento de percepção dos limites irracionais de tudo aquilo que nossa civilização já produziu e fixou como tradição. Vivamos nesta casa algo além do que nossas expectativas bem informadas sobre a cultura já nos deram, uma arte viva que ainda não adormeceu na sonolência emparedada dos museus, nos arquivos mortos e empoeirados. Experimentemos a partir de hoje a arte que permite à nossa humanidade continuar viva. A arte que não sabemos se irá durar, uma arte de hoje para hoje, que deve ser experimentada em sua urgência e intensidade atual. Uma arte verdadeiramente nossa contemporânea.
O motivo maior dessa exposição é a arte e os artistas, figuras da cultura que hoje estão mais poderosos do que nunca, que estão novamente ganhando o seu espaço no processo cultural de produção simbólica, por mais que a força de instituições, de negociações de prestígio e de dinheiro ainda pareça estar à frente dos valores estéticos de nossa sociedade. As novas tecnologias têm possibilitado um mundo que é bem mais poroso em seu tecido de relações de dominação e controle. Estamos em momento de abertura, são redes que não podem capturar os homens como peixes, elas tecem vínculos e tramam afetos para além de um mundo doméstico e de comportamentos programados. A revolução digital que se propaga provocou fissuras que podemos penetrar com nossa imaginação, abriu portas de nossa percepção que se mantinham fechadas, há novas maneira de pensar a política e a cultura.
Ao mesmo tempo em que novas formas de organização nas artes visuais vão surgindo e que a arte expande e ocupa o espaço da cidade, invertendo muitas vezes significados anteriores, muitos críticos e escritores acenam com conceitos que ajudam na reflexão destes sentidos. Josefina Ludmer nos remete ao conceito de “imaginação pública” como uma força coletiva que se traduz no trabalho social de construção do presente e nas tendências atuais das artes, que aponta para o dentro e fora não como oposição, mas como algo que acontece ao mesmo tempo:
A imaginação pública fabrica, elaboram “regimes de significação”, modos de fazer e pensar (sobretudo, de ver) que produzem presente. O público é tudo o que circula e o que está fora e dentro é social e privado ao mesmo tempo e rompe com muitas oposições e binarismos.
Josefina também fala da “cidade como cenário do presente” e neste sentido podemos entender que o conceito de “imaginação pública” fabrica em Santa Teresa um presente identificado pelos modos de viver e pensar voltado para as artes.
Giulio Argan busca relacionar a criação da obra de arte como uma produção necessária ao espaço urbano e trata da questão da “história da arte como história da cidade”. (ARGAN, 1993) A obra de arte determina um espaço urbano:
“O que a produz é a necessidade, para quem vive e opera no espaço, de representar para si de uma forma autêntica ou distorcida a situação espacial em que opera”.
A proposta de Argan é a da restituição do indivíduo à capacidade de interpretar e utilizar o ambiente urbano de maneira diferente daquela imposta pelo projeto.
(...) a cidade moderna deve realizar a passagem da dureza das coisas à mobilidade e mutabilidade das imagens.
Ele sinaliza a necessidade de participação dos artistas visuais na construção e na gestão do ambiente urbano. Também destaca a necessidade de transformação das artes visuais em urbanismo, ou seja, em visualização do espaço urbano. (ARGAN, 1993, p.220)
Trazendo estas questões para o campo das transformações da cidade na modernidade, à medida que todos esses procedimentos vão se consolidando no espaço urbano, certo aquecimento econômico começa a ser percebido e uma rede de serviços surge como subsídio ao público que ora acorre ao bairro durante os eventos. Consequentemente questões de geração de trabalho, emprego e renda passam a fazer parte deste processo e se tornam fortemente ligados a estas iniciativas.
Neste campo é preciso recuperar aquilo que vem sendo denominado “Desenvolvimento Econômico Local” – DEL que tem por objetivo promover o desenvolvimento econômico à escala local e regional na perspectiva das novas relações competitivas do capitalismo que aqui tomamos como referência as idéias apresentadas por José Luiz Viana Cruz.
Do ponto de vista da articulação dos fundamentos e das estratégias, das propostas e das práticas que disputam espaço no campo do DEL, no Brasil segundo José Luiz Viana Cruz se distingue duas grandes tendências. Ao contrário de haver um único sentido, como o uso corrente e banalizado do conceito parece indicar, ele reconhece as diferenças e investiga em qual das orientações podem ser mais bem situados os processos do DEL.
A primeira tendência identificada “aponta para fatores de ponta na dinâmica competitiva, comandada pelo mercado, ou market led, pelos grandes capitais e grandes corporações, que imprime um ritmo bastante intenso às inovações, gerando fusões, aquisições e associações. Integração que pode se dar através dos sistemas produtivos e de inovação locais”. A visão sistêmica da competitividade, geradora de vantagens concorrenciais, constitui, portanto, um elemento-chave desta concepção de DEL.
A segunda tendência apesar de incorporar as inovações técnicas e alguns elementos do mercado, provém de uma crítica mais profunda às propostas market led. “Preocupa-se com elementos utópicos de construção de formas e relações de produção e consumo alternativos aos predominantes no capitalismo. Suas origens podem também ser encontradas nas práticas espontâneas de auto-organização e autogestão de empresas e organizações econômicas dos trabalhadores. É o campo onde se situam as concepções, propostas e ações que se consideram comprometido com a construção da economia solidária e da economia dos setores populares. Estas valorizam formas associativas, solidárias, de organização de cooperativas e empreendimentos, por parte dos trabalhadores assalariados e autônomos. Assume a dimensão política e elabora esboços de uma economia em novas bases”. (CRUZ, 2005)
Ainda sob esta perspectiva Jose Luiz Viana Cruz afirma que esta segunda tendência apesar de orientar um conjunto menor de ações do poder público, torna mais presente as propostas e ações de movimentos sociais e classistas, ONGs e Universidades e diz que na escala local, essa estratégia, é trincheira de resistência e locus de construção de práticas alternativas ao novo padrão capitalista, às políticas neoliberais e ao campo de construção de um poder local mais democrático.
Dentre as duas orientações a segunda tendência é a que parece traduzir melhor os processos que vêm ocorrendo em Santa Teresa. Sem uma elaboração estratégica as diversas concepções são comprometidas com uma economia solidária, em todas as integrações sociais nas formas de cooperativas e ou de associações são valorizadas e dão corpo a uma economia local em novas bases. As práticas alternativas de participação, de trocas de mercadorias que alimentam uma cadeia produtiva fortalecem o desenvolvimento local.
Nesses procedimentos de dentro e fora e vice versa instituídos numa teia global, como também o sistema endógeno produzido pelos agentes locais nos parece ser a possibilidade mais real no sentido de chamar a atenção dos representantes do poder público, governo federal, estadual e municipal para os problemas que ainda afligem os moradores.
Os processos analisados permitem tecer considerações positivas acerca das transformações urbanas no bairro de Santa Teresa por meio da cultura, sobretudo por considerar que os caminhos ali perseguidos parecem valorizar mais os processos dos agentes do que os modelos prontos, o que dá singularidade e força ao potencial transformador de tais processos.
Se a imagem negativa em determinado momento constituiu um problema a ser enfrentado, as iniciativas locais conseguiram reverter tal quadro e o bairro ressurge como destino de circuitos culturais e de lazer alternativos àqueles de caráter mais massivo e mercadológico.
Entretanto, os problemas estruturais como segurança pública, desigualdade, desemprego e as condições precárias da habitação em áreas informais não parecem estar equacionados, por mais sólidas que sejam as redes sociais de caráter local. Tais problemas exigem uma atuação forte do estado e suas políticas públicas e o fato de Santa Teresa constituir um bairro com coletivos estruturados e redes com propostas criativas não exime as responsabilidades sociais e urbanas do poder público no que se refere ao enfrentamento de seus maiores problemas.
A diferença em relação a outros bairros a favor de Santa Teresa é que o fortalecimento dos vínculos sociais dos coletivos e das redes locais tem provocado uma atitude da sociedade civil mais vigilante e exigente no sentido de cobrar das autoridades uma presença mais forte na região.
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