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Açucena

  • Ana Prado
  • 4 de out. de 2016
  • 5 min de leitura

Atualizado: 16 de set. de 2020


Naquele dia fui dormir na casa da minha sogra para prestar assistência, pois ela havia feito uma cirurgia no joelho, as tais próteses que dão sobre vida a uma articulação estragada pelo tempo. Era uma quinta feira, final de tarde saí mais cedo de casa, porque todo morador de Santa Teresa precisa aproveitar as descidas do morro para fazer compras básicas, já que por aquelas bandas não se encontra disponível bons lugares para tal feito. Despreocupada fui em direção a uma destas lojas que tentam substituir as feiras livres, mas que de longe não tem a graça e o charme que as feiras de rua oferecem aos nossos olhos.


Açucena é filha de índia com português, nascida no alto Amazonas, guerreira e de muita fibra, hoje nos seus 81 anos aceitou passar por uma intervenção cirúrgica, visto que sua condição de caminhante estava com os dias contados. Sem saída, se preparou e encarou algo que ela nunca havia feito até esta idade, uma cirurgia de risco. A cirurgia correu bem, não teve rejeição da prótese, mas um problema de inchaço nas pernas começou a prejudicar o seu restabelecimento mais rápido. Os médicos decidiram que os medicamentos para o tratamento deveriam ser ministrados em casa por uma equipe do home care, tudo sob a responsabilidade do plano de saúde. Eu e meu marido ficamos felizes com a solução. Então começamos uma vida de rodízio, a cada vinte quatro horas entra um novo profissional na sua casa para dar prosseguimento com a medicação que precisa ser aplicada intra venosa.


Há 40 anos Açucena mora num pequeno apartamento do tipo kitinete, uma sala que funciona como quarto, cerca de vinte metros quadrados, banheiro limitado e uma mini cozinha, tudo bem organizado e planejado para uma pessoa.


Neste dia por volta das dezenove horas se aguardava a chegada do técnico de enfermagem que iria substituir o anterior. A campainha toca e Claudia que seria substituída abriu a porta. A jovem mostra primeiro o rosto brilhoso, liso e um pouco rosado, como que de lado para não apresentar o que viria logo após, calmamente aquela personagem entra, de calça jeans e blusa estampada, uma enorme mochila nas costas, mas nada comparado ao tamanho dela, simplesmente a dita cuja tinha pra lá de cem quilos de peso e talvez um metro setenta de altura.


De súbito naquele instante fechei o tempo e comecei a pensar como seria passar a noite com alguém que não passava na porta do banheiro, a não ser de lado. Solicitei que deixasse o sapato na cozinha, em seguida ela disse que precisava trocar de roupa. Bem, este pequeno apartamento além do mobiliário que compõe o ambiente tradicionalmente, recebeu nos últimos tempos novos acessórios do tipo, cadeira de rodas, cadeira higiênica e um andador. A cadeira higiênica fica no banheiro sobre o vaso sanitário e óbvio com a entrada deste personagem, começamos a primeira dança das cadeiras.


Quando ela passou por aquela porta do banheiro e a fechou, fiquei em um silencio interno aguardando o acontecimento de qualquer ruído, que prenunciasse a possível quebra do vaso sanitário. Sim, porque alguém daquele tamanho não seria possível que um simples vaso sanitário suportasse tal pressão. Respirei fundo e tive o meu primeiro momento de felicidade ao vê-la sair do banheiro, as minhas premonições não se confirmaram e tudo permaneceu no seu lugar.


Então, ela seguiu em direção a sala onde minha sogra se encontrava deitada na cama, que fica abaixo da janela, e já toda de branco com sandália havaiana cumprimenta Açucena. Logo depois ela se volta para um dos lados da pequena mesa e rapidamente sem me perguntar, senta-se em uma das três lindas cadeiras ano 50, que fazem parte de um conjunto, modelo pé palito, toda restaurada na ultima reforma que fizemos no apartamento. Estremeci por dentro, e tomei a única atitude possível, não me preocupei com ela, mas sim pela possível queda e lógico a de danificar uma peça que acompanha esta família a mais de 30 anos. Solicitei que ela não se sentasse nestas cadeiras e ofereci um pequeno banco de plástico branco, daqueles que se encontram em qualquer camelô pelas ruas da cidade. Mas a situação era difícil, pois seriam necessários dois bancos para acomodar toda aquela protuberância, e mais um para apoiar a mochila que fazia jus ao seu tamanho.


A conversa transcorreu explicando os últimos acontecimentos e o motivo dela ter sido convocada, pois a profissional anterior não conseguiu pulsar a veia para aplicação do medicamento. Ela sorriu, com o ar de crítica, se aproximou da paciente e começou a investigar a veia que seria possível para tal aplicação. Foram três tentativas de picadas profundas e em nenhuma delas fez jus ao que ela foi convocada. Novamente ela se senta naquela linda cadeira e eu aquela altura que me sentia ofendida por não ter tido escolha, estava desconfortável com a presença dela solicitei já num tom mais ácido que não se sentasse na cadeira.


Já passavam das vinte e uma horas e ela me diz que foi designada para fazer um plantão de quarenta e oito horas. Estremeci por dentro e argumentei a dificuldade dela permanecer naquele ambiente por tão longo tempo. De uma certa maneira ela concordou, então acertamos que na manhã seguinte iríamos buscar uma outra solução. Respirei aliviada, mas a noite ainda estava por acontecer.


Lá pelas tantas ela me pergunta se poderia esquentar no micro ondas a comida que trouxe, macarrão com linguiça e feijão, respondi que não havia este utensílio na casa, e ela me olha com um ar de surpresa, como se fosse possível viver sem este equipamento. Ela me pede para pegar a marmita que havia colocada na geladeira assim que chegou. Desloquei a cadeira de roda que ficava em frente a mesma, passei de lado entre o guarda roupa, banco e mesa, abro a porta da geladeira e pego um embrulho, que me chamou atenção pois era pesado, acho que tinha mais de um quilo de comida, depois ofereço para ela uma pequena panela (até as panelas da casa são pequenas) para esquentar no fogão de duas bocas. Ela come em pé na cozinha que tem meio metro quadrado livre.


Como ela não conseguiu pulsar a veia, e Açucena não poderia ficar sem medicamento, meu marido acionou os médicos do plano que resolveram utilizar os remédios via oral. Mas tudo isto não foi tão simples, ele precisou ir a Copacabana as vinte e três horas para pegar a receita com o médico de plantão e comprar o medicamento na farmácia.


E a noite continua, precisávamos dormir e sem saber o que fazer com aquele ser, acomodei dois pequenos colchetes usados para ginástica no corredor em frente a porta do banheiro, que faz ligação entre a sala e a cozinha, o qual já é a entrada do apartamento. A minha cama ficava em baixo da cama da Açucena, que para ser usada precisava se deslocar uma poltrona e uma mesa de cabeceira. Todos acomodados olhei com certo ar de preocupação para aquela pessoa dormindo no chão que ocupava toda a largura do corredor, pois já sabia o que iria acontecer na madrugada.


Mas apesar da preocupação, neste momento estava mais tranquila, e como toda paciente que toma muitos medicamentos precisa fazer xixi a toda hora, foram pelo ao menos três vezes a necessidade de Açucena caminhar de andador até o banheiro, o resto não preciso falar. Como se não bastasse a cena de guerra do apartamento, a personagem dormia a sono solto e lógico roncava muito.

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